quinta-feira, 19 de março de 2020

Contos Urbanos: I - Bloco das Meninas

Como se fosse possível um total estranho na praça, sentado na mesa de concreto a estudar uma lição de solfejo atonal num dia infernal de verão. Era possível ouvir de longe uma procissão de vozes femininas cantando e batucando panelas, e latas - ´´ Ei você aí me dá um dinheiro aí me dá um dinheiro aí `` - não só o homem ficou impressionado, mas a praça inteira, cheia de adolescentes pseudo metaleiros e Emos ficaram embasbacados. É a primeira vez que via uma coisa dessas no ano das manifestações - ´´ Mamãe eu quero mamãe eu quero mamar, dá a chupeta, dá a chupeta ...`` - Chegavam cada vez mais perto e mais alta ficava a batucada as vozes agudas metálicas ao ponto de irritar a alma mais cândida e plácida.
Eram meninas. De Perto eram só meninas e uma quase mulher. Não no sentido de alguém do sexo masculino que deseja ser mulher, mas uma jovem adolescente sem noção mesmo. Dava uns dezenove anos pra ela, a grávida no centro da passeata.
Naquele calor de fim de tarde doía ver o rapaz da mesa do lado vestindo uma camisa preta. Fazer o que? É o momento de auto afirmação dele, são os curto circuitos da aborrescencia talvez. O cara chamou a mulherada e deu vintão na mão da Gravida. Aí foi aquela gritaria: ´´EEEEEEEEEEEEEEEEEEEEH`` aquela coisa toda... Coisa de que quem não tem pra onde correr ... coisa de quem já perdeu tudo ... perdeu a Eira e a beira. O Pai da criança ´´Vazou`` como dizem na Giria da rua. E a ideia da manifestação caiu como uma luva.
No mínimo afastava o Blues da separação daquele quase homem. Praticamente um menino. Não sabia o tamanho da responsabilidade que é botar um moleque no mundo. Imagina só. Aquela ideia foi genial.
Na minha vez de contribuir. Lamentei. Não tinha dinheiro pra dar. Não conseguia para de rir com a figura da menina de cinco anos batendo com uma colher na tampa de uma panela. Com cinco ela já era uma rainha do ritmo hahahahah. Confesso que quis sacar dinheiro no caixa mais próximo. Contudo a procissão continuou sem mim, sem a minha contribuição, mas com a minha devoção. Vendo do que esse povo é capaz de fazer com a sua condição, um jeito de ser honesto consigo mesmo. Algumas pessoas sabem que no limiar da carência de tudo só resta a humildade de reconhecer no outro a única forma de legitimar a sua humanidade.

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